Artigo 2: Ética e Cidadania na História – A Longa Jornada da Pólis ao Indivíduo
As Raízes do Nosso Mundo
As ideias que hoje consideramos “óbvias” – que todos os seres humanos nascem com direitos, que um governo deve servir o povo, que a escravatura é um mal abominável – não caíram do céu. São o resultado de uma longa, tortuosa e, muitas vezes, sangrenta jornada de milhares de anos de debate, de revolução e de luta. Cada direito que hoje temos foi conquistado com o suor e, por vezes, com o sangue de gerações que vieram antes de nós.
Entender a história da ética e da cidadania não é um mero exercício de erudição. É um ato de gratidão e de responsabilidade. É compreender as raízes das nossas próprias crenças para que possamos defendê-las com mais sabedoria. É perceber que o nosso mundo não é um produto acabado, mas uma obra em constante construção, e que nós somos os herdeiros da responsabilidade de continuar a assentar os tijolos.
Neste artigo, vamos embarcar numa viagem no tempo. Começaremos nas praças ensolaradas da Grécia Antiga, onde a ideia de “cidadão” nasceu, passamos pelos corredores de pedra dos mosteiros medievais, onde a ética se vestiu de teologia, sentiremos a explosão de luz do Iluminismo, que colocou o indivíduo no centro do universo, e testemunharemos o nascimento do cidadão moderno nas forjas das grandes revoluções. Esta é a história de como nos tornamos quem somos.
1. A Invenção da Cidadania: Grécia e Roma
Grécia – O Nascimento do Animal Político
Foi na Grécia Antiga, mais especificamente na Atenas do século V a.C., que a palavra “cidadão” ganhou o seu primeiro e mais poderoso significado. Para os gregos, o ser humano só se realizava plenamente na vida da pólis, a cidade-Estado. O filósofo Aristóteles definiu o homem como um “zoon politikon“, um “animal político”, alguém cuja natureza é viver em comunidade.
- A Democracia Ateniense: A grande invenção de Atenas foi a democracia, o “governo do povo”. Os cidadãos não elegiam representantes; eles participavam diretamente nas decisões da cidade, reunindo-se na Ágora (a praça pública) para debater e votar as leis. Dois princípios eram sagrados: a isonomia (igualdade de todos perante a lei) e a isegoria (o igual direito de todos de falar na assembleia).
- A Ética da Virtude Cívica: A ética, para os gregos, estava intrinsecamente ligada à vida da pólis. Filósofos como Platão e Aristóteles debatiam sobre o que era a “vida boa”, e a resposta passava sempre pela virtude e pela contribuição para o bem comum. Um homem “ético” era um bom cidadão.
- A Cidadania como Exclusão: Aqui reside o grande paradoxo e a lição mais importante de Atenas. Esta cidadania vibrante era um privilégio de uma minoria. Mulheres, escravos e estrangeiros (os metecos) estavam completamente excluídos da vida política. Eram habitantes da cidade, mas não eram cidadãos. A cidadania, na sua origem, não foi um direito universal, mas um clube exclusivo de homens livres e proprietários de terras.
Roma – A Cidadania como Lei e Instrumento de Poder
Se a Grécia nos deu a filosofia da cidadania, Roma deu-nos a sua engenharia jurídica. À medida que Roma se expandia de uma cidade-Estado para um vasto império, a cidadania deixou de ser sobre a participação direta e tornou-se um estatuto legal (status civitatis).
- O Poder do “Civis Romanus Sum”: Ser um cidadão romano (“Civis romanus sum” – “Eu sou um cidadão romano”) era ter um escudo de proteção legal em qualquer parte do império. Dava o direito de possuir propriedade, de casar legalmente, de votar (nas fases iniciais da República) e, o mais importante, o direito de não ser torturado e condenado à morte sem um julgamento justo.
- A Cidadania como Ferramenta de Integração: De forma genial, os romanos usaram a concessão da cidadania como uma ferramenta para pacificar e integrar os povos conquistados. Ao longo dos séculos, o direito foi sendo gradualmente estendido a diferentes províncias e grupos, culminando no Édito de Caracala em 212 d.C., que concedeu a cidadania a quase todos os habitantes livres do império. Foi uma forma de transformar súbditos em romanos, criando uma identidade comum que ajudou a sustentar o império por séculos.
2. A Longa Noite e a Bússola Divina – A Ética na Idade Média
Com a queda do Império Romano, a Europa mergulhou num período de fragmentação. A ideia de um Estado central e de uma cidadania universal desapareceu. A identidade principal de uma pessoa deixou de ser a sua relação com o Estado, mas sim a sua relação com duas outras entidades: o seu senhor feudal e, acima de tudo, Deus.
- A Ética Teológica: A bússola ética deixou de apontar para a virtude cívica e passou a apontar para a lei divina, interpretada pela Igreja Católica. O debate filosófico, liderado por pensadores como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, focava-se em como conciliar a fé com a razão e em como viver uma vida que garantisse a salvação da alma. O “certo” e o “errado” eram definidos pelo pecado e pela virtude cristã.
- O Fim do Cidadão, o Início do Súdito: O conceito de cidadania foi substituído pela relação de vassalagem. A lealdade não era a um Estado abstrato, mas a um senhor de terras, a quem se devia serviço militar e trabalho em troca de proteção. A sociedade era rigidamente hierárquica, dividida em clero, nobreza e servos, e a mobilidade social era praticamente inexistente.
3. O Despertar do Indivíduo – Renascimento e Iluminismo
Após quase mil anos, a Europa começou a despertar. O Renascimento, a partir do século XIV, com a sua redescoberta da arte e da filosofia da antiguidade clássica, colocou o ser humano de volta no centro do universo. Mas foi o Iluminismo, no século XVIII, que forneceu as ferramentas intelectuais para a construção do nosso mundo moderno.
Os filósofos iluministas ousaram questionar as duas bases do Antigo Regime: o poder absoluto do rei e o monopólio da verdade pela Igreja. Eles propuseram uma nova fonte de legitimidade: a razão.
- John Locke e os Direitos Naturais: O filósofo inglês argumentou que todos os seres humanos, pelo simples facto de existirem, nascem com direitos naturais inalienáveis: o direito à vida, à liberdade e à propriedade. Estes direitos não são uma concessão do rei; eles são anteriores a qualquer governo.
- Jean-Jacques Rousseau e o Contrato Social: O pensador franco-suíço questionou a origem do poder. No seu livro “O Contrato Social”, ele argumentou que um governo só é legítimo se derivar do “consentimento dos governados”. Os cidadãos, livremente, concordam em abdicar de uma parte da sua liberdade individual em troca da segurança e do bem-estar que a vida em sociedade proporciona. O povo é o verdadeiro soberano.
- Montesquieu e a Separação de Poderes: Para evitar a tirania, o barão de Montesquieu propôs a separação do poder do Estado em três ramos independentes e que se fiscalizam mutuamente: o Executivo (que governa), o Legislativo (que faz as leis) e o Judiciário (que julga).
Estas ideias foram uma bomba de relógio, o rastilho de pólvora que levaria às grandes revoluções que definiriam o nosso conceito moderno de cidadania.
4. As Revoluções e o Nascimento do Cidadão Moderno
- A Revolução Americana (1776): Inspirados por Locke, os colonos americanos declararam a sua independência da Grã-Bretanha com uma frase que mudou o mundo: “Consideramos estas verdades como auto evidentes, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”. A Constituição Americana, com o seu famoso preâmbulo “We the People…” (“Nós, o Povo…”), foi a primeira a colocar em prática a ideia de um governo criado pelo povo e para o povo. No entanto, o paradoxo grego repetiu-se: os “homens” que eram “criados iguais” não incluíam os escravos africanos nem as mulheres.
- A Revolução Francesa (1789): Se a revolução americana foi mais pragmática, a francesa foi mais radical e universalista. Com o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, os revolucionários derrubaram a monarquia e proclamaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que afirmava que “os homens nascem e são livres e iguais em direitos”. Foi a certidão de nascimento do cidadão moderno, cuja pertença não é mais definida pelo sangue ou pela religião, mas por um conjunto de direitos e de deveres partilhados.
5. O Século XX: A Expansão e as Crises da Cidadania
O século XIX e, principalmente, o século XX foram o palco da longa e dolorosa luta para expandir os direitos proclamados por estas revoluções a todos os que tinham sido deixados de fora.
- A Luta por Direitos: Foi o século dos grandes movimentos sociais. O movimento operário lutou por direitos sociais, como a limitação da jornada de trabalho e o direito à greve. O movimento sufragista lutou pelo direito de voto para as mulheres. E o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, liderado por figuras como Martin Luther King Jr., lutou para acabar com a segregação racial e garantir que a promessa de igualdade da constituição se aplicasse, de facto, aos cidadãos negros.
- A Crise dos Totalitarismos: O século XX também testemunhou a mais brutal negação da ética e da cidadania da história. Regimes totalitários como o Nazismo na Alemanha e o Fascismo na Itália mostraram como um Estado pode usar a tecnologia e a propaganda para transformar cidadãos em meros instrumentos e para exterminar sistematicamente aqueles que considerava “indesejáveis”.
- A Resposta Global: Os Direitos Humanos: A barbárie da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto forçou a humanidade a uma profunda reflexão. Em 1948, as Nações Unidas proclamaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este documento é, talvez, o marco ético mais importante da nossa história. Pela primeira vez, a comunidade internacional tentou definir um conjunto de direitos fundamentais que se aplicam a todos os seres humanos, em todos os lugares, independentemente da sua nacionalidade, etnia, religião ou gênero. É a tentativa de criar uma cidadania global, uma bússola ética para toda a humanidade.
Os Ecos da História em Nós
A nossa compreensão atual sobre ética e cidadania não é uma construção monolítica, mas um mosaico complexo, uma herança de todas estas eras. Carregamos connosco o ideal grego de participação, a noção romana de direitos legais, a bússola moral judaico-cristã, a fé iluminista na razão e as cicatrizes profundas e as esperanças nascidas das lutas do século XX.
Esta longa jornada ensina-nos duas lições fundamentais. A primeira é a da humildade: as nossas certezas de hoje podem ser vistas como as barbaridades de amanhã. A segunda é a da responsabilidade: a história da cidadania é a história de uma expansão contínua, de círculos de pertença que vão sendo alargados para incluir os que antes eram excluídos. Esta história não terminou. Nós, no século XXI, somos os seus protagonistas, e cabe-nos a tarefa de continuar a lutar para que a promessa de dignidade, de liberdade e de justiça se torne, um dia, uma realidade para todos.
Sugestão de Leitura
Para quem deseja uma visão panorâmica e fascinante sobre como as grandes revoluções do pensamento moldaram a nossa história, desde a Revolução Cognitiva até à Revolução Científica, uma obra-prima indispensável é:
- “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade“ por Yuval Noah Harari.

Harari não foca exclusivamente na ética ou na cidadania, mas oferece o contexto mais amplo possível para entendermos como as nossas estruturas sociais, os nossos mitos e as nossas crenças evoluíram ao longo do tempo. É um livro que muda a forma como vemos o mundo e o nosso lugar nele.
Referências
- Platão. A República.
- Aristóteles. Política e Ética a Nicómaco.
- Rousseau, Jean-Jacques. O Contrato Social.
- Locke, John. Dois Tratados sobre o Governo.
- Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776).
- Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Escrito por Gustavo Figueiredo
Fundador do Conexão Essencial
Apaixonado por leitura, música e pelo equilíbrio entre corpo e mente. Compartilho aqui conhecimentos pragmáticos e confiáveis para fortalecer as conexões essenciais da sua vida.
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